Entenda a Diferença: Obrigação de Meio vs. Obrigação de Resultado
Na discussão jurídica no campo da saúde, fala-se muito em obrigação de meio e obrigação de resultado. Mas o que significam esses termos? Em resumo, quando um profissional assume uma obrigação de meio, ele se compromete a empregar todos os meios e cuidados necessários para atender o paciente, sem garantir um resultado específico. Já na obrigação de resultado, o profissional praticamente promete um determinado resultado final ao paciente – e caso esse resultado não seja atingido, presume-se que algo deu errado na conduta do profissional.
Traduzindo para uma linguagem do dia a dia: na obrigação de meio, o dentista deve agir com diligência, técnica e prudência, fazendo o melhor possível, porém sem assegurar um desfecho certo. Por outro lado, na obrigação de resultado, espera-se um objetivo definido (por exemplo, corrigir o alinhamento dos dentes, eliminar determinada dor ou melhorar a estética do sorriso) – e se isso não for alcançado, a tendência é responsabilizar o profissional, salvo se ele provar que não teve culpa na falha.
Essa distinção é importante porque afeta quem deve provar o quê numa eventual ação judicial. Em obrigações de meio (regra dos médicos em geral), o paciente é quem precisa comprovar que o profissional agiu com negligência, imprudência ou imperícia. Já nas obrigações de resultado, a situação se inverte: se o resultado esperado não ocorre ou ocorre de forma insatisfatória, presume-se que houve falha, cabendo ao profissional demonstrar que fez tudo corretamente. Em outras palavras, o dentista precisa provar que não agiu com culpa, caso contrário poderá ser condenado.
A Responsabilidade dos Dentistas na Visão da Justiça Brasileira
Uma pergunta comum dos profissionais de odontologia é: “A responsabilidade do dentista é tratada como obrigação de meio ou de resultado?”. Em regra, os tribunais brasileiros têm entendido que se trata de obrigação de resultado. Ou seja, na maioria das vezes, espera-se que o dentista entregue o resultado prometido ao paciente (seja funcional ou estético) – e a não obtenção desse resultado pode gerar dever de indenizar, salvo prova em contrário.
Essa posição tem respaldo em decisões dos Tribunais Superiores. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já afirmou, por exemplo, que nos procedimentos odontológicos, especialmente ortodônticos, os profissionais “em regra, comprometem-se pelo resultado”, pois os objetivos de tratamentos (de natureza estética e funcional) “podem ser atingidos com previsibilidade”. Em outras palavras, diferentemente de muitas intervenções médicas em que há inúmeras variáveis incontroláveis, grande parte dos tratamentos dentários segue protocolos bem definidos e tende a ter resultados mais uniformes – o que leva a Justiça a cobrar o resultado final dessas intervenções.
Os tribunais estaduais seguem a mesma linha. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, em vários julgados adota o entendimento de que a obrigação assumida pelo cirurgião-dentista é principalmente de resultado, recaindo sobre o profissional o ônus de provar que não agiu com culpa. Isso significa que, em caso de insucesso ou complicação, o dentista deve demonstrar que não houve falha de sua parte (seja técnica ou na diligência), pois a princípio presume-se a responsabilidade diante do resultado insatisfatório. Em um caso recente em MG, um dentista foi condenado por falha estética e funcional em tratamento odontológico entendendo, “Configura-se como obrigação de resultado a responsabilidade civil do cirurgião-dentista em tratamentos de implantes e facetas”(TJMG – Apelação Cível 1.0000.24.529359-2/001, Relator(a): Des.(a) Maria Luiza Santana Assunção , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/04/2025, publicação da súmula em 10/04/2025) – mantendo-se a condenação por danos morais e materiais.
Por outro lado, é importante destacar: a responsabilidade dos dentistas continua sendo subjetiva, nos termos da lei. O Código de Defesa do Consumidor (art. 14, §4º) e o Código Civil (art. 951) estabelecem que profissionais liberais (incluindo cirurgiões-dentistas) só respondem civilmente se houver culpa. Ou seja, não é uma responsabilidade automática ou objetiva. A diferença é que, nos casos em que a Justiça enxerga a obrigação como de resultado, essa culpa passa a ser presumida (chamada “culpa in re ipsa” pelos juristas). Portanto, não é que o dentista responda por todo e qualquer insucesso – mas se o tratamento não surtir o efeito esperado, o dentista precisará demonstrar que agiu corretamente e que o insucesso decorreu de um fator alheio à sua atuação.
Casos Reais e Jurisprudência dos Últimos Anos
Diversas decisões judiciais recentes ilustram como esse entendimento tem sido aplicado na prática. Vamos a alguns exemplos reais dos tribunais nos últimos 5 anos:
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Implante dentário mal sucedido – TJDFT (2020): Uma paciente do Distrito Federal sofreu complicações após um tratamento de implante dentário (dois parafusos implantados de forma incorreta, gerando infecção e necessidade de correções). O Tribunal de Justiça do DF reforçou que tratamentos odontológicos com fim de implantar dentes são obrigação de resultado, cabendo à clínica demonstrar que prestou o serviço adequadamente ou que a frustração do resultado ocorreu por alguma causa que exclua sua responsabilidade. No caso, constatado o erro na execução (imperícia na técnica de enxerto e implante), a clínica foi responsabilizada por danos morais e reembolso de valores pagos. Perceba que o tribunal expressamente afirmou esse deslocamento do encargo probatório: era dever da clínica provar que não falhou ou que o insucesso decorreu de fator imprevisível – o que não se comprovou. (Acórdão 1262162, 07188327520178070001, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 1/7/2020, publicado no DJE: 21/7/2020.)
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Tratamento ortodôntico prolongado sem sucesso – vários tribunais: Tratamentos ortodônticos (uso de aparelho para corrigir dentes) geralmente têm objetivo funcional e estético. Tribunais têm considerado esses contratos como de resultado. O próprio STJ já se referiu especificamente aos profissionais de ortodontia, apontando que em regra assumem compromisso de resultado, dada a previsibilidade de atingir os objetivos propostos. Portanto, se após anos de uso de aparelho ortodôntico o paciente não obtiver a correção esperada (salvo se for um caso realmente complexo ou se o paciente não colaborou, por exemplo), há um forte argumento jurídico para responsabilizar o ortodontista. Estudos levantados por especialistas mostram que a maioria dos processos judiciais envolvendo dentistas têm sido julgados sob a ótica de obrigação de resultado – em um levantamento de 167 ações em vários estados, 64 decisões consideraram a obrigação como de resultado (contra um número bem menor que considerou obrigação de meio), resultando em muitas condenações. Esses números evidenciam a tendência clara da jurisprudência recente.
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Procedimentos estéticos odontológicos: Quando falamos de tratamento puramente estético – digamos, um clareamento dental, aplicação de facetas de porcelana (lentes de contato dental) ou harmonização orofacial – a inclinação em ver obrigação de resultado é ainda mais forte. Nesses casos, a própria natureza do contrato é a busca por um aprimoramento estético específico. A doutrina jurídica já ressaltava isso: o renomado jurista Sérgio Cavalieri Filho, por exemplo, ensina que para dentistas a regra geral é obrigação de resultado, especialmente porque seus procedimentos tendem a ser mais específicos e regulares, de menor complexidade comparados a atos médicos, e muitas vezes com foco estético. Ele destaca que, quando o paciente procura colocar um aparelho corretivo, uma prótese ou “jaquetas” de porcelana, ele está em busca de um resultado, não se contentando com meros esforços sem sucesso. Os tribunais têm seguido esse raciocínio: um caso julgado em Minas Gerais envolvendo clareamento dental, por exemplo, mencionou essa orientação doutrinária e acabou reconhecendo a falha do profissional, visto que o tratamento não só não atingiu o efeito desejado como causou danos ao dente da paciente (enfraquecimento e necessidade de implante). Em suma, se o serviço contratado for estético, a Justiça tende a exigir o resultado prometido – tal como ocorre com cirurgias plásticas estéticas na medicina. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.08.133401-3/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: Valéria Rocha Barrioni – Apelada: Adriana Gonçalves Damazo – Relator: DES. ALBERTO HENRIQUE)
Existe espaço para obrigação de meio na odontologia? De fato, há quem defenda que algumas atividades do dentista, especialmente as de caráter mais emergencial ou diagnóstico, deveriam ser vistas como obrigação de meio (sem garantia de cura). Por exemplo, no tratamento de uma infecção grave ou doença bucal sistêmica, o dentista, agindo como profissional de saúde, muitas vezes enfrenta variáveis complexas semelhantes às da medicina geral. Algumas poucas decisões isoladas chegaram a isentar dentistas quando ficou provado que o insucesso ocorreu apesar de todo o cuidado profissional. Entretanto, essas são exceções. A regra consolidada nos últimos anos – tanto no STJ quanto na maioria dos Tribunais de Justiça – é tratar a prestação de serviços odontológicos como obrigação de resultado naquilo que for previsível e esperado do tratamento. Por isso, do ponto de vista prático, os cirurgiões-dentistas devem atuar já pressupondo que serão cobrados pelo resultado final acordado com o paciente, principalmente em procedimentos de rotina, funcionais e estéticos.
Fundamentos Jurídicos Utilizados pelos Tribunais
Para respaldar essas decisões, os julgadores costumam se basear em alguns fundamentos jurídicos-chave:
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Código de Defesa do Consumidor (CDC): A relação entre dentista e paciente, via de regra, é de consumo (prestação de serviço odontológico mediante remuneração). O CDC, no art. 14, §4º, estabelece que a responsabilidade pessoal de profissionais liberais (como dentistas) depende de culpa. Ou seja, afasta a responsabilidade objetiva. Porém, o mesmo CDC dá ao paciente-consumidor certos benefícios processuais, como a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII) quando verossímil a alegação de falha. Além disso, o CDC exige que os serviços sejam prestados de maneira adequada e com informações claras sobre riscos e limitações. Os tribunais, ao rotular o serviço do dentista como obrigação de resultado, harmonizam isso com o CDC dizendo: sim, é responsabilidade subjetiva, mas se o serviço é defeituoso (não atinge o fim prometido), fica caracterizada a falha na prestação, devendo o profissional demonstrar que não agiu com culpa. É uma forma de proteger o consumidor sem fugir do texto legal que exige culpa – presume-se a culpa diante do defeito do serviço.
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Código Civil: Os artigos 186 e 927 do Código Civil embasam a obrigação de indenizar quando há ação ou omissão culposa que cause dano. No contexto odontológico, também é citado o art. 951 do CC, que trata da indenização por erro de profissionais da saúde. Em conjunto, esses dispositivos deixam claro que o dentista só responde se houver conduta culposa (negligência, imprudência ou imperícia) que cause dano ao paciente. Entretanto, quando se caracteriza a obrigação de resultado, muitos julgados entendem que o inadimplemento do resultado acordado já sinaliza a possível culpa (falha na técnica, escolha de procedimento inadequado, falta de cuidado etc., salvo prova contrária). Assim, o arcabouço legal permite que se condene o dentista por erro comprovado (via perícia, por exemplo) ou mesmo por não ter atingido o resultado quando este era esperado e ao seu alcance.
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Jurisprudência consolidada (precedentes): Ao decidir casos, juízes e desembargadores frequentemente citam precedentes do STJ e de outros tribunais sobre o tema. É comum aparecerem referências a julgados famosos, como o do STJ (Resp 1.238.746/MS) que fixou a visão de que procedimentos odontológicos têm resultados previsíveis e, portanto, caracterizam obrigação de resultado. Também são mencionados autores consagrados do Direito (como Sérgio Cavalieri Filho e Caio Mário da Silva Pereira) que já sustentavam essa distinção favorável ao paciente na odontologia. Em síntese, há todo um repertório de decisões anteriores dando suporte para que novas decisões sigam pelo mesmo caminho, garantindo uma certa uniformidade no entendimento.
Boas Práticas para Dentistas Evitarem Riscos Jurídicos
Diante desse cenário, o que os cirurgiões-dentistas podem fazer para mitigar riscos e exercer a profissão com mais tranquilidade? Seguem boas práticas recomendadas que podem fazer toda a diferença:
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Informe e alinhe expectativas desde o início: Seja transparente com seu paciente. Explique claramente o diagnóstico, as opções de tratamento, os potenciais riscos, limitações e os resultados possíveis de serem alcançados. Evite prometer resultados garantidos – além de isso poder configurar propaganda enganosa, cria uma expectativa que, se frustrada, praticamente assegura um processo judicial. Lembre-se: paciente bem informado tende a confiar mais e se frustra menos. Use linguagem acessível, mostre fotos ilustrativas quando pertinente e tire todas as dúvidas.
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Tenha tudo por escrito (contrato e consentimento informado): Formalize a prestação de serviços por meio de um contrato escrito e plano de tratamento, discriminando os procedimentos incluídos, o custo, a duração prevista, as obrigações de cada parte e eventuais fatores fora do controle. Um contrato claro, redigido com base na boa-fé, pode prevenir muitos desentendimentos futuros. Além disso, para cada procedimento, utilize um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assinado pelo paciente, indicando que ele foi orientado sobre os riscos, benefícios e alternativas. Mas atenção: não basta o paciente assinar um papel – é essencial que ele compreenda o conteúdo. Portanto, dedique tempo para explicar o TCLE verbalmente.
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Capriche no prontuário e registros do paciente: O prontuário odontológico é seu grande aliado. Registre a situação anterior do paciente antes do tratamento e faça registro detalhado de cada etapa do tratamento, os materiais utilizados, as recomendações passadas ao paciente (inclusive instruções pós-operatórias ou de higiene, quando for o caso) e quaisquer intercorrências. Guarde resultados de exames, radiografias, fotografias do antes e depois, termos assinados, recibos — enfim, documente todo o histórico. Se o paciente faltar a consultas ou não seguir alguma orientação, anote isso também. Em eventual processo, um prontuário bem feito permite demonstrar que você adotou todos os cuidados cabíveis. A diferença entre um profissional que fez tudo certo e outro que consegue provar que fez tudo certo está na qualidade da documentação.
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Não negligencie o acompanhamento e o pós-tratamento: Muitas ações judiciais contra dentistas decorrem de pacientes que se sentiram abandonados após uma complicação. Então, mantenha um canal aberto com o paciente durante e após o tratamento. Se surgir um efeito adverso ou resultado aquém do esperado, não fuja do problema: reavalie o paciente, proponha soluções, realize retratamentos se necessário (dentro de suas competências) ou encaminhe a um especialista. Mostre interesse genuíno em resolver. Às vezes, uma prótese mal adaptada pode ser corrigida antes que vire um litígio; uma dor persistente pode ser tratada ou esclarecida. Esse cuidado não só é ético, mas também estratégico – demonstra boa-fé e pode evitar que o paciente procure a Justiça por se sentir desassistido.
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Atualize-se e siga os protocolos técnicos: A imperícia (falta de habilidade ou conhecimento técnico) é uma das formas de culpa que podem ser alegadas contra um dentista. Portanto, invista em educação continuada, cursos de atualização e esteja sempre a par dos protocolos reconhecidos pela comunidade odontológica. Seguir as “boas práticas” da profissão também tem reflexo jurídico: se você adota o que é tecnicamente recomendado e mesmo assim ocorre um insucesso, ficará mais fácil provar que a culpa não foi sua. Por outro lado, se você improvisa sem base técnica ou utiliza materiais de qualidade duvidosa, estará assumindo um risco desnecessário. Além disso, observe as normas sanitárias e regulatórias (por exemplo, supervisão adequada de auxiliares, calibragem de equipamentos, uso de EPI, etc.), pois descuidos nessas áreas podem gerar responsabilizações indiretas.
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Suporte jurídico: Tenha contato com um advogado especializado em Defesa do Dentista. Muitas vezes, uma orientação preventiva (como a revisão dos seus contratos, TCLEs, formulários e outros documentos, ou respostas a reclamações de pacientes) evita problemas maiores. Caso seja acionado judicialmente, procure ajuda qualificada logo no início; apresentar uma boa defesa (fundamentada tecnicamente e juridicamente) pode até inverter um caso aparentemente desfavorável.
Conclusão
A questão da obrigação de meio versus obrigação de resultado na odontologia deixou de ser uma mera discussão acadêmica e tornou-se um fator concreto na responsabilização civil dos dentistas. A tendência atual da Justiça brasileira é tratar a atividade odontológica, em grande medida, como obrigação de resultado, sobretudo em procedimentos de resultado previsível e caráter estético ou funcional bem definido. Isso não quer dizer que o dentista seja garantidor absoluto de curas e sorrisos perfeitos – mas significa que ele precisa estar preparado para demonstrar que atuou com excelência técnica e ética, caso o desfecho não seja o desejado.
Para os dentistas e pacientes, essa evolução traz um recado importante. A confiança e a comunicação devem ser a base da relação. Do lado do profissional, adotar práticas transparentes, documentar tudo e não prometer o que não se pode cumprir são atitudes que protegem a si mesmo e ao paciente. Do lado do paciente, compreender que nem tudo depende exclusivamente do dentista (existem fatores biológicos e individuais) ajuda a ter expectativas realistas – mas, ao mesmo tempo, saber que seus direitos estão amparados caso haja um erro verdadeiro ou descaso.
Em última análise, a melhor “defesa” para o cirurgião-dentista é a prevenção: prestar um bom serviço, com zelo e dentro dos padrões, e registrar de forma robusta essa boa prática. Assim, ele estará não apenas cumprindo seu dever profissional, mas também munido de provas para mostrar, se preciso, que fez o seu melhor. E quando o resultado for alcançado com sucesso (que é o que todos esperamos!), tanto o paciente quanto o profissional saem satisfeitos – sem qualquer necessidade de acionar tribunais.